“OLHOS SANGRENTOS”
AUTOR: Gleyson
Spadetti
GÊNERO DO CONTO: Terror
- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!
- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!
- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!
A lua beijava o sol cobrindo a terra com seu
manto de trevas. O bando de uirapurus agonizava no chão, abraçando a morte
diante da entrada da gruta Kinich-Ahau.
Como uma serpente prestes a atacar, Ipoema deslizava
seu corpo sobre o holocausto dos pássaros. Seus olhos infantis atentos - como
se pertencessem a um velho guerreiro de sua tribo Mayoruna – seguiam a fumaça
verde cintilante que, envolvendo sedutoramente sua mãe Umarama, a levava para o
interior da gruta.
- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã! – dizia
a voz que ecoava da fumaça verde.
Encurralada entre o medo e o instinto, Ipoema estava
prestes a dar o bote e arrancar sua mãe das entranhas verdes daquele mal. Foi
quando, para o espanto de seus olhos, Ipoema viu uma mão cadavérica sair de
dentro da fumaça que envolvia Umarama. Tão logo a mão putrefata tocou o ventre
de sua mãe a barriga dela começou a crescer.
- Sete anos passarão até que nos
vejamos novamente. No dia exato em que completarem sete anos você os trará de
volta à minha presença e se prostrará com eles diante de mim. Quando o sol estiver prestes a atingir o topo
do céu, marcando a metade do dia, suas gargantas deverão ser degoladas, e você
lavará meu espírito com o sangue jorrado de meus filhos – disse a voz ecoada de
dentro da fumaça.
A barriga de Umarama cresceu até os nove meses
de gestação, e quando a lua começou a se afastar do sol, devolvendo o dia a
Terra, não havia mais nada que Ipoema pudesse fazer.
Tão logo o dia retornava a fumaça verde foi se
dirigindo à escuridão, às entranhas da terra, revelando dois olhos azuis que
olhavam diretamente para Ipoema.
- Sete anos é o tempo que lhe dou para que
traga seus irmãos diante de mim e lave meu espírito com o sangue desse
holocausto que hoje eu lhe ordeno, Ipoema. Sete anos para que você me honre com
sangue ou tenha como destino a destruição eterna de todo o povo Mayoruna –
disseram aqueles olhos azuis pulsantes.
Um trovão rasgou o véu do tempo e Ipoema abriu
seus olhos para o dia que acabara de começar. Sete anos haviam se passado desde
aquele dia nefasto na Floresta de Kukulkan.
O toque do tambor no exterior de sua oca já anunciava
o inicio dos festejos pelos sete anos que seus irmãos gêmeos completariam ao
meio-dia. Seu pai, o cacique Jurecê, já bradava os primeiros versos de louvor
aos deuses, por terem lhe concedido a glória de ser pai de dois filhos varões,
dois herdeiros de seu reino.
Ipoema sabia, e só ela sabia, que nada havia
de miraculoso no nascimento de seus irmãos. E que o ventre seco de sua mãe
Umarama não fora tocado por uma benção, mas por uma nefasta face da morte.
Todos os dias, desde aquele dia, durante sete
anos, Ipoema foi atormentada por aquela voz, por aqueles olhos azuis, que sempre
rondavam a noite de seus sonhos.
- Nem pense em se aproximar de seus irmãos
hoje, Ipoema – disse Umarama, segurando o braço da menina que mais parecia um
guerreiro Mayoruna, assim que Ipoema saiu de sua oca. – Hoje é um dia de festa e gratidão para todo
o povo Mayoruna. Seu pai terá punição severa para qualquer um que estrague esse
dia.
Ipoema, encarando desafiadoramente sua mãe, se
arrancou de sua presença, dando-lhe as costas. Umarama segurou-lhe novamente
pelo braço.
- Tão logo você sangre pela primeira vez, e se
faça mulher, você casará com o herdeiro da tribo Iboturama e partirá daqui para
sempre. Não é seguro, para você e seus irmãos, que tamanho ódio permaneça meio
ao nosso povo. Você atrai má sorte para nossa aldeia a cada vez que fita seus
irmãos com seu rancor. Treze anos você completará na próxima lua nova, e quando
o sangue descer por suas pernas você deverá partir.
Todos
estavam tomados por uma cegueira inebriante que os impedia de enxergar o mal
que crescia diante deles na forma daqueles pequenos índios gêmeos. Apenas por
sua existência irmãos gêmeos já eram um presságio de guerra e destruição, um
mau agouro das trevas. Mas, mesmo diante do fato de que cada um dos meninos
possuía um olho castanho e o outro olho azul, nem mesmo isso serviu de alerta
para o povo e para seus pais, pensava Ipoema.
Porã e
Teçã – os gêmeos herdeiros do cacique Jurecê – já estavam de mãos dadas, bem no
meio da roda formada por todos os guerreiros da tribo, quando Ipoema finalmente
chegou ao terreiro.
- Hoje, ao meio-dia, minha grande alegria
completará sete anos de vida. Partimos agora, neste raiar do sol, seguindo sua
luz, rumo à caça da grande anta negra. Tão logo nossas mãos a capturem, juntos,
eu e meus irmãos de guerra, retornaremos a este nosso solo sagrado para honrar
a vida de meus filhos com o sangue e a carne deste animal sagrado – disse
Jurecê, o mais corpulento e aguerrido dentre todos os homens.
Entoando um grito de guerra Jurecê e seus
guerreiros entraram na mata.
Lideradas por Umarama um cortejo de mulheres
seguiu os gêmeos, Porã e Teçã, até a entrada de uma oca vermelha.
Diante da oca, Umarama abriu a porta para seus
filhos e proclamou:
- Guardai silêncio e oração, pois eis que
entreis por essa porta meninos, e saireis dela pequenos homens destinados a
aprender a arte de liderar todo o nosso povo.
Tão logo os gêmeos entraram naquele lugar
Ipoema, que observava tudo de longe sem ser vista, correu para a parte de trás da
oca vermelha.
- Porã, Teçã, meus irmãos, hoje é um dia de
muita glória para todo o nosso povo. E será ainda mais glorioso se, para honra
de nosso pai, vocês se juntarem a mim numa caçada.
Ipoema rasgara um furo na parte de trás da
oca, e agora estava com a metade do corpo dentro do lugar.
- Sabemos que você quer apenas nos destruir
diante de nosso pai, Ipoema. Sempre nos olhou com ódio e rancor, pois pensava
que um dia poderia governar. Sabes que às mulheres não se dá o arco, mas o
cesto, e isso você não pode aceitar – disse Porã.
- Não seja infantil, Porã. Eu sei onde o
jaguar negro fez seu ninho de repouso. Vamos matá-lo juntos, e trazer sua carne
e pele para a aldeia, para a glória de nosso pai.
- Você quer apenas insultar nossa honra
perante a aldeia – Teçã retrucou.
- Pois bem acho que tenho mais direito ao arco
e flecha que vocês dois, que deveriam se curvar diante do cesto. Pois antes do
meio-dia vou provar meu valor maior perante o de vocês, e vou cruzar o terreiro
arrastando o corpo morto do jaguar negro. Veremos quem há de segurar o arco.
Ipoema já estava correndo pela Floresta de
Kukulkan quando ouviu os gritos de Porã e Teçã que imploravam para que ela os
esperasse.
- Eu vi quando os gêmeos seguiram
Ipoema floresta adentro, grande senhora – falou Inhatira, uma serva de Umarama.
- Rápido, Inhatira, reúna todas as mulheres da
aldeia. Precisamos encontrar Porã e Teçã e trazê-los de volta antes do retorno
de Jurecê. Temo por uma grande desgraça caso Ipoema se renda ao seu ódio pelos
irmãos mais novos.
Quando as mulheres da aldeia seguiram as
primeiras pegadas de Ipoema e dos gêmeos, o trio já observava o rastro do
jaguar negro adormecido.
- Ele está ali, bem atrás daquela pedra. Eu o vejo
entrar e sair dali há três semanas, e guardei para hoje, para este grande dia,
seu holocausto, que nos trará grande glória.
Ipoema e os gêmeos, lanças em punho, se
aproximam sorrateiramente do ninho do jaguar, prontos para dar um bote certeiro
no animal adormecido.
- Agora! – disse Ipoema, saltando junto com os
irmãos dentro do ninho.
- Eu sabia que não tinha jaguar nenhum! –
gritou Porã.
- Você quer apenas dos humilhar diante de
nosso pai – disse Teçã.
- Eu não menti. Ele sempre esteve aqui. Deve
ter sentido nossa presença e fugido.
- Vamos embora, Porã. Ipoema tem inveja de
nosso destino – disse Teçã.
Os gêmeos deram as mãos e as costas
para Ipoema, e seguiram pelo caminho de volta.
- Espera! Eu tenho certeza que ele não deve
estar muito longe. Vamos encontrá-lo.
Os gêmeos pararam e se voltaram para sua irmã.
- Chega de suas mentiras e artimanhas, Ipoema.
Não há jaguar negro nenhum, apenas a sua inveja por nosso destino.
- Basta! Chega de tantas intrigas. Sou sua
irmã mais velha e ordeno que retornem agora para que juntos ofereçamos esse
holocausto ao nosso pai ou vão se arrepender amargamente de...
Antes que Ipoema completasse sua ameaça o
jaguar negro, surgido dos arbustos, pelou em seu pescoço, rolando com ela para
trás de uma pedra.
Apavorados pela sinfonia mortal composta pelos
gritos de dor e rosnados ameaçadores, Porã e Teçã jogaram fora suas lanças
correram em desespero pela mata.
- Partiram em desespero. Agora é a hora –
disse Ipoema para o jaguar negro que a olhava atentamente. – Faça sua parte,
Balam, e os leve encurralados até o interior da gruta Kinich-Ahau.
Balam, o jaguar negro que fingira atacar
Ipoema, a obedecia como um animal doméstico.
- Agora vá, Balam, não perca tempo! – disse
Ipoema.
Com um rugido ameaçador Balam partiu no rastro
dos gêmeos enquanto Ipoema se embrenhava no outro lado da floresta.
Apavorados com os urros de Balam cada vez mais
próximos, Porã e Teçã corriam mais rápido que duas lebres, sem nem olhar
direito por qual caminho estavam indo.
- Por
aqui, Porã. – disse Teçã enquanto corria – Vamos para o rio. Nas águas ele não
consegue nos alcançar.
Nem bem tomaram o caminho do rio e Balam se
lançou no ar, bem diante deles, que só tiveram tempo de mudar a direção e
correr, mais uma vez, para dentro da floresta, enquanto o jaguar os perseguia
urrando.
- Uma gruta, Teçã, veja! Vamos nos esconder
nela! Corra, meu irmão – disse Porã.
Quando Balam urrou pela última vez, seguindo
os gêmeos, pode ver que eles haviam acabado de entrar na gruta Kinich-Ahau.
Feito um gato, Balam se esgueirou para dentro
de um arbusto, há alguns metros da entrada da gruta, mantendo um olhar vigilante.
- E agora, como sairemos daqui? – disse Porã.
- Já é quase meio-dia. Veja Porã, dá pra ver o
sol ali por aquele rasgo no teto da gruta – falou Teçã. – E se fugíssemos por
ali?
- Como? É alto demais. Não alcançamos –
retrucou Porã.
De repente, um vulto feminino, entrecortado
pela luz do sol, surgiu na abertura rasgada na pedra do teto da gruta.
- Mãe!
– gritaram os gêmeos em uníssono.
A figura feminina se lançou pela fresta da
pedra e, girando duas vezes no ar, caiu de pé, imponente, bem diante dos dois
meninos boquiabertos.
- Nem em meus piores pesadelos desejaria ser
chamada de mãe por duas aberrações das trevas feitos vocês, animais imundos –
disse Ipoema.
Ipoema tinha um olhar ameaçador como nunca
antes os gêmeos tinham visto.
- Há sete anos a presença de vocês atormenta
minha alma, mas hoje isso terá um fim.
- Não se aproxime de nós, Ipoema, ou... –
disse Porã fingindo não estar com medo.
- Ou o quê? – gritou Ipoema.
- Nosso pai vai acabar com você! – ameaçou
Teçã enquanto segurava mais forte do que nunca a mão de seu irmão.
- Cale-se! O dia de hoje será lembrado e
festejado como o dia em que nosso povo, os Mayoruna, se livrou de uma maldição.
E eu serei lembrada há muitas luas daqui, nas canções ancestrais de nossa tribo
– disse Ipoema, enquanto desenrolava uma corda feita de cipó verde.
Ipoema olhou para a fresta na pedra, no teto
da gruta, e viu que o sol estava quase atingindo o centro do céu, o meio-dia.
- É chegada a hora – Ipoema falou, laçando os
gêmeos com a corda de cipó verde.
Ipoema se jogou com violência sobre os dois
meninos e, numa luta feroz, os amarrou de costas um para o outro.
Não bastasse a violência da amarração, Ipoema
tratou de amordaçar-lhes a boca com o mesmo cipó verde que os imobilizava.
Tomada por ódio e rancor, Ipoema arrastou os
irmãos até uma pedra retangular, que batia na altura de sua cintura, e,
erguendo os meninos no ar, os jogou violentamente sobre ela.
- Este será o altar em que o futuro negro de
meu povo será lavado de nosso destino com seu sangue imundo – grunhiu Ipoema.
Sem nenhuma piedade pelas lágrimas de
desespero que rolavam pelas faces de seus irmãos apavorados, Ipoema fitou o
sol, que adentrava o meio-dia.
Ipoema retirou de sua cintura uma faca de
pedra, afiada e entrecortada por dentes cravejados na lâmina, e a ergueu no ar.
- Oh, inominado deus sangrento da fumaça
verde, tal qual comandastes, eis aqui o sacrifício final que me ordenastes pelo
bem de minha tribo, o povo Mayoruna – entoou Ipoema sem perceber que, no céu,
um eclipse, como o do dia em que os gêmeos foram colocados no ventre de sua
mãe, estava cobrindo a terra com trevas.
Uma fumaça verde cintilante, a mesma dos
pesadelos tormentosos de Ipoema, começa a surgir das entranhas da terra,
serpenteando em direção ao altar do sacrifício.
A fumaça verde, tal qual uma cobra, vai se
enroscando ao redor do altar, dos gêmeos, de Ipoema - que mantém a faca erguida
no ar.
- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã! –
bradou a voz grave saída da fumaça – É chegada a hora, pequena e destemida
guerreira Ipoema! Cumpra seu dever, ou o caos lhe arrebatará! Roiko'i Haguã
peraa va'kue roiko'i aguã!
Os gêmeos urravam de pavor diante do olhar
vidrado de Ipoema.
- Faça agora! – trovejou a voz saída da fumaça
verde.
- Não! – um grito desesperado ecoou da entrada
da gruta.
Com uma lança em punho, Umarama entrou
correndo pela gruta em direção ao altar e seus três filhos envoltos pela fumaça
verde.
Balam,
o jaguar negro, saltou na gruta, perseguindo Umarama que já estava prestes a
atirar a lança em Ipoema.
Quando a mãe desesperada começou a atirar sua
lança no ar, um raio, saído da fumaça verde em meio a um estrondo ensurdecedor,
transpassou pelo meio, num único golpe, Umarama e Balam, o jaguar.
A força avassaladora do raio derrubou Umarama
que caiu sem vida no chão, enquanto Balam se atirou no pescoço de Ipoema,
rasgando-lhe impiedosamente a carne.
O sangue de Ipoema jorrava fervente sobre os
gêmeos, sobre o altar, enquanto o pescoço da menina era estraçalhado pelas
mandíbulas enfurecidas do jaguar.
Balam chacoalhava o corpo sem vida de Ipoema de
um lado para o outro, violentamente, até que, num último golpe, jogou a menina
morta no chão e, pisando sobre ela, arrancou-lhe a cabeça do corpo, jogando-a
para longe.
Uma gargalhada estridente preencheu toda a
gruta.
- Pobre da mulher que confia mais nos olhos do
que naquilo que lhe diz a sua intuição – bradou a voz da fumaça verde. – Vedes
a que ponto chegastes por não ouvir com compaixão a quem sempre lhe fora leal
quando este suplicou por sua vida, Umarama.
- Quem é você, ser desprezível do mal, que
tanta desgraça me trouxe? Por que me fez vítima de tamanha crueldade? – disse
Umarama.
- Vocês homens sempre se colocam como pobres
vítimas diante dos poderes que não podem controlar, mas são incapazes de ouvir
e perdoar quando estão cegos de ódio, tomados pelo desejo de vingança – falou a
fumaça.
- Por que me escolhestes para tamanha
provação? Me fazer vítima de presenciar a morte de minha filha primogênita, a
única que meu ventre gerou antes de secar, antes da graça miraculosa me
conceder meus amados filhos gêmeos? – suplicou Umarama.
- Presenciar? Olhe bem para você, Umarama. És
tão cega que ainda não percebeu a verdade? – disse a fumaça.
- Não! Não! Mil vezes não! – urrou Umarama.
Umarama se jogou diante do corpo dilacerado de
Ipoema, rosnando, urrando, esperneando, rolando na terra ao se descobrir presa
no corpo do jaguar negro, Balam.
Umarama, num salto, olhou ao redor. Onde
estava seu corpo? Tinha certeza que quando entrou na caverna ainda era humana.
- Onde está meu corpo humano, mostro terrível
que obriga uma mãe a destruir sua única filha? – rosnou Umarama.
Um sorriso feminino, vindo da escuridão,
começou a ficar cada vez mais forte, se transformando numa gargalhada. Umarama
viu sair da escuridão, escarnecendo dela, seu corpo humano. Mas aquela não era
sua voz, seu andar, seus trejeitos...
Não, não era possível!
- Acira! – urrou Umarama.
- Eu disse que um dia você pagaria
caro por não ter acreditado em mim, não disse minha irmã – falou Acira, a
mulher cuja alma residia no corpo humano de Umarama.
- Pobre do homem que sucumbe a sua ira e fica
cego diante da súplica daquele que diz que não o traiu – disse a fumaça, que começa
a transmutar sua forma, se desenroscando do altar e dos gêmeos.
Dois olhos azuis, incandescentes feito o fogo,
surgem no meio da fumaça.
Ao redor dos olhos azuis uma face cadavérica,
putrefata, começa a se formar. A face avança de dentro da fumaça para o
interior da gruta, e já não é apenas uma face, mas um homem, um imponente
cadáver em decomposição, quase um esqueleto.
Os gêmeos, ainda amarrados, se desvencilham
das cordas e, de mãos dadas, ficam de pé sobre o altar. Seus olhos azuis, a
anomalia que Ipoema sabia ser um sinal do mal, brilham incandescentes como os
olhos da criatura cadavérica saída da fumaça verde.
- Meus filhos! A quanto tempo aguardo por
nosso encontro – disse a criatura cadavérica.
Os
gêmeos se ajoelham diante da criatura, fazendo-lhe reverencia.
Umarama, presa no corpo do jaguar, urra de
ódio e salta sobre a criatura cadavérica que, ao levantar sua mão esquerda
espalmada, imobiliza a fera negra em pleno salto.
- Por que vocês fizeram isso comigo? Por que,
Acira? – urrou Umarama.
- Cale-se, criatura inútil e ventre seco. –
disse a criatura cadavérica – Há quatro mil anos eu vago pelas sombras,
enfraquecido e disforme, por ter sido esquecido pelos homens. Houve um tempo de
honra e glória a meu nome, em que as escadarias das pirâmides eram lavadas com
sangue em minha honra, em minha glória. Mas os homens infiéis se afastaram dos
deuses, e nos legaram ao esquecimento, à dor da escuridão. Quando seu marido
orava aos deuses pelo milagre de um filho varão, um herdeiro homem de seu trono,
fui eu quem o ouviu durante aquele eclipse. Sua irmã Acira, que lhe era
absolutamente fiel, se banhava no rio, e eu a enfeiticei e a deitei nos braços
de Jurecê. Eu incorporei no corpo de Jurecê e coloquei meus filhos no ventre de
Acira.
- Mas eu gerei e pari os gêmeos, eles são meus
filhos! – rosnou Umarama.
- Quando você baniu Acira da aldeia Mayoruna –
disse a criatura cadavérica -, ela buscou abrigo da chuva em minha gruta. Eu
propus a ela um pacto, que hoje eu cumprirei, de fazê-la rainha da tribo
Mayoruna, assumindo seu lugar. Então, quando você e Ipoema catavam amoras na
floresta, eu te enfeiticei, e te trouxe até minha gruta. Aqui eu transferi meus
filhos da barriga de Acira para a sua barriga, e transferi a alma de Acira para
o corpo desse jaguar negro onde você está. E você pensou que havia sido
presenteada com um milagre, Umarama.
- Monstros! Monstros! – urrava Umarama.
- Você devia ter ouvido sua pequena Ipoema.
Ela seguiu você até a gruta. Ela viu quando eu coloquei meus filhos no seu
ventre. – disse a criatura cadavérica.
- Minha filha, me perdoe! – Umarama quase não
tinha mais forças para se debater.
- E hoje, você, Umarama, me trouxe de volta a
vida, banhando meu espírito com o sangue de uma virgem criança, que ainda não
havia sangrado seu ventre pela primeira vez, morta pela própria mãe.
- Não! Não! – urrava Umarama cada vez mais
enfraquecida.
- Obrigado por me trazer de volta a
vida, Umarama. Obrigada por trazer ao mundo meus filhos, os herdeiros do meu
reino de sangue que agora se restabelecera sobre a terra para todo o sempre. “Roiko'i
Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!”; “devolvam a terra que vocês roubaram de
mim!” – disse a criatura cadavérica.
Acira e os gêmeos se ajoelham diante da
criatura cadavérica, cujos olhos azuis agora jorram sangue.
- Eu sou Ah Puch, o senhor do sangue,
o deus da morte, o guardião da passagem entre os dois mundos!
- Oh, grande Ah Puch! – disseram os
gêmeos e Acira ajoelhados diante de seu corpo cadavérico.
Acira, rindo diabolicamente, recolhe no chão a
lança que Umarama trazia quando tentou matar Ipoema, e se levanta.
Diante da irmã imobilizada no ar,
presa no corpo do jaguar, Acira sorri em escárnio antes de transpassar, com suas
mãos, a lança pelo peito e pelo coração da fera apavorada que urrou de dor e
desespero antes de bufar seu último suspiro de vida.