terça-feira, 11 de outubro de 2016

"Olhos Sangrentos"

“OLHOS SANGRENTOS”
AUTOR: Gleyson Spadetti

GÊNERO DO CONTO: Terror 


- Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!

 - Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!

 - Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!

 A lua beijava o sol cobrindo a terra com seu manto de trevas. O bando de uirapurus agonizava no chão, abraçando a morte diante da entrada da gruta Kinich-Ahau.

 Como uma serpente prestes a atacar, Ipoema deslizava seu corpo sobre o holocausto dos pássaros. Seus olhos infantis atentos - como se pertencessem a um velho guerreiro de sua tribo Mayoruna – seguiam a fumaça verde cintilante que, envolvendo sedutoramente sua mãe Umarama, a levava para o interior da gruta.    

 - Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã! – dizia a voz que ecoava da fumaça verde.

 Encurralada entre o medo e o instinto, Ipoema estava prestes a dar o bote e arrancar sua mãe das entranhas verdes daquele mal. Foi quando, para o espanto de seus olhos, Ipoema viu uma mão cadavérica sair de dentro da fumaça que envolvia Umarama. Tão logo a mão putrefata tocou o ventre de sua mãe a barriga dela começou a crescer.

- Sete anos passarão até que nos vejamos novamente. No dia exato em que completarem sete anos você os trará de volta à minha presença e se prostrará com eles diante de mim.  Quando o sol estiver prestes a atingir o topo do céu, marcando a metade do dia, suas gargantas deverão ser degoladas, e você lavará meu espírito com o sangue jorrado de meus filhos – disse a voz ecoada de dentro da fumaça.

 A barriga de Umarama cresceu até os nove meses de gestação, e quando a lua começou a se afastar do sol, devolvendo o dia a Terra, não havia mais nada que Ipoema pudesse fazer.

 Tão logo o dia retornava a fumaça verde foi se dirigindo à escuridão, às entranhas da terra, revelando dois olhos azuis que olhavam diretamente para Ipoema.  

   - Sete anos é o tempo que lhe dou para que traga seus irmãos diante de mim e lave meu espírito com o sangue desse holocausto que hoje eu lhe ordeno, Ipoema. Sete anos para que você me honre com sangue ou tenha como destino a destruição eterna de todo o povo Mayoruna – disseram aqueles olhos azuis pulsantes.

 Um trovão rasgou o véu do tempo e Ipoema abriu seus olhos para o dia que acabara de começar. Sete anos haviam se passado desde aquele dia nefasto na Floresta de Kukulkan.  

 O toque do tambor no exterior de sua oca já anunciava o inicio dos festejos pelos sete anos que seus irmãos gêmeos completariam ao meio-dia. Seu pai, o cacique Jurecê, já bradava os primeiros versos de louvor aos deuses, por terem lhe concedido a glória de ser pai de dois filhos varões, dois herdeiros de seu reino.

 Ipoema sabia, e só ela sabia, que nada havia de miraculoso no nascimento de seus irmãos. E que o ventre seco de sua mãe Umarama não fora tocado por uma benção, mas por uma nefasta face da morte.

 Todos os dias, desde aquele dia, durante sete anos, Ipoema foi atormentada por aquela voz, por aqueles olhos azuis, que sempre rondavam a noite de seus sonhos.

 - Nem pense em se aproximar de seus irmãos hoje, Ipoema – disse Umarama, segurando o braço da menina que mais parecia um guerreiro Mayoruna, assim que Ipoema saiu de sua oca.  – Hoje é um dia de festa e gratidão para todo o povo Mayoruna. Seu pai terá punição severa para qualquer um que estrague esse dia.

 Ipoema, encarando desafiadoramente sua mãe, se arrancou de sua presença, dando-lhe as costas. Umarama segurou-lhe novamente pelo braço.

 - Tão logo você sangre pela primeira vez, e se faça mulher, você casará com o herdeiro da tribo Iboturama e partirá daqui para sempre. Não é seguro, para você e seus irmãos, que tamanho ódio permaneça meio ao nosso povo. Você atrai má sorte para nossa aldeia a cada vez que fita seus irmãos com seu rancor. Treze anos você completará na próxima lua nova, e quando o sangue descer por suas pernas você deverá partir.

  Todos estavam tomados por uma cegueira inebriante que os impedia de enxergar o mal que crescia diante deles na forma daqueles pequenos índios gêmeos. Apenas por sua existência irmãos gêmeos já eram um presságio de guerra e destruição, um mau agouro das trevas. Mas, mesmo diante do fato de que cada um dos meninos possuía um olho castanho e o outro olho azul, nem mesmo isso serviu de alerta para o povo e para seus pais, pensava Ipoema.  

  Porã e Teçã – os gêmeos herdeiros do cacique Jurecê – já estavam de mãos dadas, bem no meio da roda formada por todos os guerreiros da tribo, quando Ipoema finalmente chegou ao terreiro.

 - Hoje, ao meio-dia, minha grande alegria completará sete anos de vida. Partimos agora, neste raiar do sol, seguindo sua luz, rumo à caça da grande anta negra. Tão logo nossas mãos a capturem, juntos, eu e meus irmãos de guerra, retornaremos a este nosso solo sagrado para honrar a vida de meus filhos com o sangue e a carne deste animal sagrado – disse Jurecê, o mais corpulento e aguerrido dentre todos os homens.

 Entoando um grito de guerra Jurecê e seus guerreiros entraram na mata.

 Lideradas por Umarama um cortejo de mulheres seguiu os gêmeos, Porã e Teçã, até a entrada de uma oca vermelha.

 Diante da oca, Umarama abriu a porta para seus filhos e proclamou:

 - Guardai silêncio e oração, pois eis que entreis por essa porta meninos, e saireis dela pequenos homens destinados a aprender a arte de liderar todo o nosso povo.

 Tão logo os gêmeos entraram naquele lugar Ipoema, que observava tudo de longe sem ser vista, correu para a parte de trás da oca vermelha.

 - Porã, Teçã, meus irmãos, hoje é um dia de muita glória para todo o nosso povo. E será ainda mais glorioso se, para honra de nosso pai, vocês se juntarem a mim numa caçada.

 Ipoema rasgara um furo na parte de trás da oca, e agora estava com a metade do corpo dentro do lugar.

 - Sabemos que você quer apenas nos destruir diante de nosso pai, Ipoema. Sempre nos olhou com ódio e rancor, pois pensava que um dia poderia governar. Sabes que às mulheres não se dá o arco, mas o cesto, e isso você não pode aceitar – disse Porã.

 - Não seja infantil, Porã. Eu sei onde o jaguar negro fez seu ninho de repouso. Vamos matá-lo juntos, e trazer sua carne e pele para a aldeia, para a glória de nosso pai.

 - Você quer apenas insultar nossa honra perante a aldeia – Teçã retrucou.

 - Pois bem acho que tenho mais direito ao arco e flecha que vocês dois, que deveriam se curvar diante do cesto. Pois antes do meio-dia vou provar meu valor maior perante o de vocês, e vou cruzar o terreiro arrastando o corpo morto do jaguar negro. Veremos quem há de segurar o arco.

 Ipoema já estava correndo pela Floresta de Kukulkan quando ouviu os gritos de Porã e Teçã que imploravam para que ela os esperasse.

- Eu vi quando os gêmeos seguiram Ipoema floresta adentro, grande senhora – falou Inhatira, uma serva de Umarama.

 - Rápido, Inhatira, reúna todas as mulheres da aldeia. Precisamos encontrar Porã e Teçã e trazê-los de volta antes do retorno de Jurecê. Temo por uma grande desgraça caso Ipoema se renda ao seu ódio pelos irmãos mais novos.

 Quando as mulheres da aldeia seguiram as primeiras pegadas de Ipoema e dos gêmeos, o trio já observava o rastro do jaguar negro adormecido.

 - Ele está ali, bem atrás daquela pedra. Eu o vejo entrar e sair dali há três semanas, e guardei para hoje, para este grande dia, seu holocausto, que nos trará grande glória.

 Ipoema e os gêmeos, lanças em punho, se aproximam sorrateiramente do ninho do jaguar, prontos para dar um bote certeiro no animal adormecido.

 - Agora! – disse Ipoema, saltando junto com os irmãos dentro do ninho.

 - Eu sabia que não tinha jaguar nenhum! – gritou Porã.

 - Você quer apenas dos humilhar diante de nosso pai – disse Teçã.

 - Eu não menti. Ele sempre esteve aqui. Deve ter sentido nossa presença e fugido.

 - Vamos embora, Porã. Ipoema tem inveja de nosso destino – disse Teçã.

Os gêmeos deram as mãos e as costas para Ipoema, e seguiram pelo caminho de volta.

 - Espera! Eu tenho certeza que ele não deve estar muito longe. Vamos encontrá-lo.  

 Os gêmeos pararam e se voltaram para sua irmã.

 - Chega de suas mentiras e artimanhas, Ipoema. Não há jaguar negro nenhum, apenas a sua inveja por nosso destino.

 - Basta! Chega de tantas intrigas. Sou sua irmã mais velha e ordeno que retornem agora para que juntos ofereçamos esse holocausto ao nosso pai ou vão se arrepender amargamente de...

 Antes que Ipoema completasse sua ameaça o jaguar negro, surgido dos arbustos, pelou em seu pescoço, rolando com ela para trás de uma pedra.

 Apavorados pela sinfonia mortal composta pelos gritos de dor e rosnados ameaçadores, Porã e Teçã jogaram fora suas lanças correram em desespero pela mata.

 - Partiram em desespero. Agora é a hora – disse Ipoema para o jaguar negro que a olhava atentamente. – Faça sua parte, Balam, e os leve encurralados até o interior da gruta Kinich-Ahau. 

 Balam, o jaguar negro que fingira atacar Ipoema, a obedecia como um animal doméstico.

 - Agora vá, Balam, não perca tempo! – disse Ipoema.

 Com um rugido ameaçador Balam partiu no rastro dos gêmeos enquanto Ipoema se embrenhava no outro lado da floresta.

 Apavorados com os urros de Balam cada vez mais próximos, Porã e Teçã corriam mais rápido que duas lebres, sem nem olhar direito por qual caminho estavam indo.

  - Por aqui, Porã. – disse Teçã enquanto corria – Vamos para o rio. Nas águas ele não consegue nos alcançar.  

 Nem bem tomaram o caminho do rio e Balam se lançou no ar, bem diante deles, que só tiveram tempo de mudar a direção e correr, mais uma vez, para dentro da floresta, enquanto o jaguar os perseguia urrando.

 - Uma gruta, Teçã, veja! Vamos nos esconder nela! Corra, meu irmão – disse Porã.

 Quando Balam urrou pela última vez, seguindo os gêmeos, pode ver que eles haviam acabado de entrar na gruta Kinich-Ahau.

 Feito um gato, Balam se esgueirou para dentro de um arbusto, há alguns metros da entrada da gruta, mantendo um olhar vigilante.

 - E agora, como sairemos daqui? – disse Porã.

 - Já é quase meio-dia. Veja Porã, dá pra ver o sol ali por aquele rasgo no teto da gruta – falou Teçã. – E se fugíssemos por ali?

 - Como? É alto demais. Não alcançamos – retrucou Porã.

 De repente, um vulto feminino, entrecortado pela luz do sol, surgiu na abertura rasgada na pedra do teto da gruta.

  - Mãe! – gritaram os gêmeos em uníssono.

 A figura feminina se lançou pela fresta da pedra e, girando duas vezes no ar, caiu de pé, imponente, bem diante dos dois meninos boquiabertos.

 - Nem em meus piores pesadelos desejaria ser chamada de mãe por duas aberrações das trevas feitos vocês, animais imundos – disse Ipoema.

 Ipoema tinha um olhar ameaçador como nunca antes os gêmeos tinham visto.

 - Há sete anos a presença de vocês atormenta minha alma, mas hoje isso terá um fim. 

 - Não se aproxime de nós, Ipoema, ou... – disse Porã fingindo não estar com medo.

 - Ou o quê? – gritou Ipoema.

 - Nosso pai vai acabar com você! – ameaçou Teçã enquanto segurava mais forte do que nunca a mão de seu irmão.

 - Cale-se! O dia de hoje será lembrado e festejado como o dia em que nosso povo, os Mayoruna, se livrou de uma maldição. E eu serei lembrada há muitas luas daqui, nas canções ancestrais de nossa tribo – disse Ipoema, enquanto desenrolava uma corda feita de cipó verde.

 Ipoema olhou para a fresta na pedra, no teto da gruta, e viu que o sol estava quase atingindo o centro do céu, o meio-dia.

 - É chegada a hora – Ipoema falou, laçando os gêmeos com a corda de cipó verde.

 Ipoema se jogou com violência sobre os dois meninos e, numa luta feroz, os amarrou de costas um para o outro.

 Não bastasse a violência da amarração, Ipoema tratou de amordaçar-lhes a boca com o mesmo cipó verde que os imobilizava.

 Tomada por ódio e rancor, Ipoema arrastou os irmãos até uma pedra retangular, que batia na altura de sua cintura, e, erguendo os meninos no ar, os jogou violentamente sobre ela.

 - Este será o altar em que o futuro negro de meu povo será lavado de nosso destino com seu sangue imundo – grunhiu Ipoema.

 Sem nenhuma piedade pelas lágrimas de desespero que rolavam pelas faces de seus irmãos apavorados, Ipoema fitou o sol, que adentrava o meio-dia.

 Ipoema retirou de sua cintura uma faca de pedra, afiada e entrecortada por dentes cravejados na lâmina, e a ergueu no ar.

 - Oh, inominado deus sangrento da fumaça verde, tal qual comandastes, eis aqui o sacrifício final que me ordenastes pelo bem de minha tribo, o povo Mayoruna – entoou Ipoema sem perceber que, no céu, um eclipse, como o do dia em que os gêmeos foram colocados no ventre de sua mãe, estava cobrindo a terra com trevas.

 Uma fumaça verde cintilante, a mesma dos pesadelos tormentosos de Ipoema, começa a surgir das entranhas da terra, serpenteando em direção ao altar do sacrifício.

 A fumaça verde, tal qual uma cobra, vai se enroscando ao redor do altar, dos gêmeos, de Ipoema - que mantém a faca erguida no ar.

 - Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã! – bradou a voz grave saída da fumaça – É chegada a hora, pequena e destemida guerreira Ipoema! Cumpra seu dever, ou o caos lhe arrebatará! Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!

 Os gêmeos urravam de pavor diante do olhar vidrado de Ipoema.

 - Faça agora! – trovejou a voz saída da fumaça verde.

 - Não! – um grito desesperado ecoou da entrada da gruta.

 Com uma lança em punho, Umarama entrou correndo pela gruta em direção ao altar e seus três filhos envoltos pela fumaça verde.

  Balam, o jaguar negro, saltou na gruta, perseguindo Umarama que já estava prestes a atirar a lança em Ipoema.

 Quando a mãe desesperada começou a atirar sua lança no ar, um raio, saído da fumaça verde em meio a um estrondo ensurdecedor, transpassou pelo meio, num único golpe, Umarama e Balam, o jaguar.

 A força avassaladora do raio derrubou Umarama que caiu sem vida no chão, enquanto Balam se atirou no pescoço de Ipoema, rasgando-lhe impiedosamente a carne.

 O sangue de Ipoema jorrava fervente sobre os gêmeos, sobre o altar, enquanto o pescoço da menina era estraçalhado pelas mandíbulas enfurecidas do jaguar.

 Balam chacoalhava o corpo sem vida de Ipoema de um lado para o outro, violentamente, até que, num último golpe, jogou a menina morta no chão e, pisando sobre ela, arrancou-lhe a cabeça do corpo, jogando-a para longe.

 Uma gargalhada estridente preencheu toda a gruta.

 - Pobre da mulher que confia mais nos olhos do que naquilo que lhe diz a sua intuição – bradou a voz da fumaça verde. – Vedes a que ponto chegastes por não ouvir com compaixão a quem sempre lhe fora leal quando este suplicou por sua vida, Umarama.

 - Quem é você, ser desprezível do mal, que tanta desgraça me trouxe? Por que me fez vítima de tamanha crueldade? – disse Umarama.

 - Vocês homens sempre se colocam como pobres vítimas diante dos poderes que não podem controlar, mas são incapazes de ouvir e perdoar quando estão cegos de ódio, tomados pelo desejo de vingança – falou a fumaça.

 - Por que me escolhestes para tamanha provação? Me fazer vítima de presenciar a morte de minha filha primogênita, a única que meu ventre gerou antes de secar, antes da graça miraculosa me conceder meus amados filhos gêmeos? – suplicou Umarama.

 - Presenciar? Olhe bem para você, Umarama. És tão cega que ainda não percebeu a verdade? – disse a fumaça.

 - Não! Não! Mil vezes não! – urrou Umarama.

 Umarama se jogou diante do corpo dilacerado de Ipoema, rosnando, urrando, esperneando, rolando na terra ao se descobrir presa no corpo do jaguar negro, Balam.

 Umarama, num salto, olhou ao redor. Onde estava seu corpo? Tinha certeza que quando entrou na caverna ainda era humana.

 - Onde está meu corpo humano, mostro terrível que obriga uma mãe a destruir sua única filha? – rosnou Umarama.

 Um sorriso feminino, vindo da escuridão, começou a ficar cada vez mais forte, se transformando numa gargalhada. Umarama viu sair da escuridão, escarnecendo dela, seu corpo humano. Mas aquela não era sua voz, seu andar, seus trejeitos...

 Não, não era possível!

 - Acira! – urrou Umarama.

- Eu disse que um dia você pagaria caro por não ter acreditado em mim, não disse minha irmã – falou Acira, a mulher cuja alma residia no corpo humano de Umarama.

 - Pobre do homem que sucumbe a sua ira e fica cego diante da súplica daquele que diz que não o traiu – disse a fumaça, que começa a transmutar sua forma, se desenroscando do altar e dos gêmeos.

 Dois olhos azuis, incandescentes feito o fogo, surgem no meio da fumaça.

 Ao redor dos olhos azuis uma face cadavérica, putrefata, começa a se formar. A face avança de dentro da fumaça para o interior da gruta, e já não é apenas uma face, mas um homem, um imponente cadáver em decomposição, quase um esqueleto.

 Os gêmeos, ainda amarrados, se desvencilham das cordas e, de mãos dadas, ficam de pé sobre o altar. Seus olhos azuis, a anomalia que Ipoema sabia ser um sinal do mal, brilham incandescentes como os olhos da criatura cadavérica saída da fumaça verde.

 - Meus filhos! A quanto tempo aguardo por nosso encontro – disse a criatura cadavérica.

  Os gêmeos se ajoelham diante da criatura, fazendo-lhe reverencia.

 Umarama, presa no corpo do jaguar, urra de ódio e salta sobre a criatura cadavérica que, ao levantar sua mão esquerda espalmada, imobiliza a fera negra em pleno salto.

 - Por que vocês fizeram isso comigo? Por que, Acira? – urrou Umarama.

 - Cale-se, criatura inútil e ventre seco. – disse a criatura cadavérica – Há quatro mil anos eu vago pelas sombras, enfraquecido e disforme, por ter sido esquecido pelos homens. Houve um tempo de honra e glória a meu nome, em que as escadarias das pirâmides eram lavadas com sangue em minha honra, em minha glória. Mas os homens infiéis se afastaram dos deuses, e nos legaram ao esquecimento, à dor da escuridão. Quando seu marido orava aos deuses pelo milagre de um filho varão, um herdeiro homem de seu trono, fui eu quem o ouviu durante aquele eclipse. Sua irmã Acira, que lhe era absolutamente fiel, se banhava no rio, e eu a enfeiticei e a deitei nos braços de Jurecê. Eu incorporei no corpo de Jurecê e coloquei meus filhos no ventre de Acira.

 - Mas eu gerei e pari os gêmeos, eles são meus filhos! – rosnou Umarama.

 - Quando você baniu Acira da aldeia Mayoruna – disse a criatura cadavérica -, ela buscou abrigo da chuva em minha gruta. Eu propus a ela um pacto, que hoje eu cumprirei, de fazê-la rainha da tribo Mayoruna, assumindo seu lugar. Então, quando você e Ipoema catavam amoras na floresta, eu te enfeiticei, e te trouxe até minha gruta. Aqui eu transferi meus filhos da barriga de Acira para a sua barriga, e transferi a alma de Acira para o corpo desse jaguar negro onde você está. E você pensou que havia sido presenteada com um milagre, Umarama.

 - Monstros! Monstros! – urrava Umarama.

 - Você devia ter ouvido sua pequena Ipoema. Ela seguiu você até a gruta. Ela viu quando eu coloquei meus filhos no seu ventre. – disse a criatura cadavérica.

 - Minha filha, me perdoe! – Umarama quase não tinha mais forças para se debater.

 - E hoje, você, Umarama, me trouxe de volta a vida, banhando meu espírito com o sangue de uma virgem criança, que ainda não havia sangrado seu ventre pela primeira vez, morta pela própria mãe.

 - Não! Não! – urrava Umarama cada vez mais enfraquecida.

- Obrigado por me trazer de volta a vida, Umarama. Obrigada por trazer ao mundo meus filhos, os herdeiros do meu reino de sangue que agora se restabelecera sobre a terra para todo o sempre. “Roiko'i Haguã peraa va'kue roiko'i aguã!”; “devolvam a terra que vocês roubaram de mim!” – disse a criatura cadavérica.

 Acira e os gêmeos se ajoelham diante da criatura cadavérica, cujos olhos azuis agora jorram sangue.

- Eu sou Ah Puch, o senhor do sangue, o deus da morte, o guardião da passagem entre os dois mundos!

- Oh, grande Ah Puch! – disseram os gêmeos e Acira ajoelhados diante de seu corpo cadavérico.

 Acira, rindo diabolicamente, recolhe no chão a lança que Umarama trazia quando tentou matar Ipoema, e se levanta. 


 Diante da irmã imobilizada no ar, presa no corpo do jaguar, Acira sorri em escárnio antes de transpassar, com suas mãos, a lança pelo peito e pelo coração da fera apavorada que urrou de dor e desespero antes de bufar seu último suspiro de vida.   

7 comentários:

Toffoli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Toffoli disse...

Comecei a ler e ja me peguei envolvido pelo conto....espero que o epílogo seja tão intenso...até o proximo comentário.

Toffoli disse...

Comecei a ler e ja me peguei envolvido pelo conto....espero que o epílogo seja tão intenso...até o proximo comentário.

Toffoli disse...

Comecei a ler e ja me peguei envolvido pelo conto....espero que o epílogo seja tão intenso...até o proximo comentário.

Unknown disse...

Uma ótima história que merece uma continuação. E agora? Os gêmeos se renderão ao mal? E o pai deles?

Unknown disse...

Uma ótima história que merece uma continuação. E agora? Os gêmeos se renderão ao mal? E o pai deles?

Unknown disse...

Um conto muito bem escrito e no meio a trama acaba se construindo e vários entraves vão sendo esclarecidos. Bem forte!